terça-feira, 19 de março de 2013

Unidos pelo Aquífero Guarani


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Rio Daymán, no Uruguai, é um dos mananciais abastecidos pela reserva GuaraniFoto: guscabreranqn

A eclosão de uma terceira guerra mundial provocada pela escassez de água pode ser ainda um alarme digno de uma ficção hollywoodiana. Mas a existência de conflitos pela utilização dos recursos hídricos não é somente viável, como é realidade neste momento em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil.

Em 2010, o número de incidentes relacionados à água no Brasil chegou a 87, afetando diretamente 197.210 pessoas, segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil. Desses, 47 conflitos (54%) tiveram relação ao uso e preservação da água, 31 (26,5%) tinham a ver com o uso de barragens e açudes e nove (10,3%) à apropriação particular.

Com apenas 1% do total de água disponível no planeta Terra sendo doce – o que não significa que seja potável, a distribuição geograficamente desigual desses recursos os torna elemento estratégico para o desenvolvimento de qualquer local.
Além da escassez, a rápida piora da qualidade da água e o aumento populacional só tendem a agravar o cenário. A estimativa da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é a de que, até 2050, a demanda mundial de água aumentará 55%.

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Escassez e distribuição geográfica desigual da água são principais causas de conflitos
Foto: UN Photo/Tim McKulka

Conflitos

Diante desse quadro, as Nações Unidas definiram 2013 como o Ano Internacional da Cooperação pela Água, de modo a difundir a ideia que a partilha dos recursos é um meio mais “interessante” de utilização do que a posse pelos conflitos. 
“Em geral, se diz que a água pode ser uma fonte de conflito. Mas na Unesco somos guiados pela ideia oposta. Queremos ver a água como um tremendo recurso para a cooperação, para o intercâmbio e o trabalho conjunto entre os Estados e as sociedades”, declarou à IPS a diretora-geral da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), Irina Bokova.
Uma das iniciativas em destaque pela ONU como modelo de cooperação, o Sistema do Aquífero Guarani será gerido em breve em conjunto pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, países que abrigam mananciais da reserva subterrânea nos territórios. “É a primeira vez que se tem um acordo sem conflito", ressalta Ribeiro.
Embora ressalte que conflitos são bem mais usuais que a cooperação atualmente, o geógrafo Wagner Ribeiro, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam) e do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP), concorda. “Uma guerra seria algo pouco exequível, uma vez que um conflito armado contaminaria àquilo pelo qual se pretende atingir: os recursos hídricos”, explica.
“Trata-se do único tratado multilateral que se propõe a regular, especificamente, águas subterrâneas transfronteiriças”, ressalta o embaixador João Luiz Pereira Pinto, diretor do Departamento da América do Sul-I do Itamaraty: “Estamos caminhando para superar a antiga visão de que a disputa por recursos hídricos seria potencialmente um ponto de conflito entre os países, em benefício de uma visão contemporânea, segundo a qual há espaço para o diálogo e a cooperação”.

Tupiniquim

Inicialmente imaginado com uma gigantesca reserva subterrânea, descobriu-se com os estudos técnicos que o Aquífero Guarani é um complexo conjunto de mananciais não necessariamente interligados. Mesmo assim, é considerado atualmente como “um dos maiores sistemas de mananciais transfronteiriços de água doce subterrânea do mundo”. Inserido na Bacia Geológica Sedimentar do Paraná, o Guarani possui 1,2 milhões de km², dos quais 71% são situados em sete estados brasileiros, 19% na Argentina, 6% do Paraguai e 4% no Uruguai.  

A água do Guarani já era captada desde o período colonial, mas sua importância só foi reconhecida a partir da década de 1950, principalmente nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, ainda hoje os maiores usuários da água do reservatório.

Embora a ideia do acordo de cooperação tenha surgido há quase dez anos e a assinatura oficial do documento fosse realizada em 2010 pelos quatro países na Cúpula do Mercosul em San Juan (Argentina), o tratado aguarda ainda ratificação do Brasil e do Paraguai para entrar em vigor. Por aqui, o documento ainda está em análise nos Ministérios, “devendo ser encaminhado ao Congresso em breve”, segundo o governo.
Já no Paraguai, o acordo foi rejeitado pelo Congresso, provavelmente em represália às sanções sofridas pelo país no âmbito do Mercosul (o país está suspenso desde junho devido à destituição do então presidente Fernando Lugo em detrimento do presidente atual Federico Franco). Contudo, ainda há possibilidades de uma nova consideração sobre a matéria. E com boas chances de aprovação, uma vez que, segundo especialistas, as partes “só têm a ganhar” com o tratado.

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Sistema de mananciais é predominantemente brasileiro, mas abrange ainda argentina, Uruguai e Paraguai
Foto: Movimento Cyan

Na prática, o tratado de cooperação deverá facilitar o intercâmbio técnico e tecnológico entre os países, além de facilitar o controle do uso das águas subterrâneas, já largamente utilizadas para o abastecimento agrícola e humano no Brasil – o Guarani responde por uma grande parcela do abastecimento nos municípios de Ribeiro Preto (SP) e Maringá (PR), por exemplo.
Apesar de considerar a soberania de nação sobre o uso das águas em seus territórios, o acordo prevê sanções, caso haja qualquer tipo de contaminação que prejudique a outra parte inserida no tratado. "O acordo é um bom ponto de partida. Uma vez ratificado, poderemos dispor de instituições que contribuirão para um corpo hídrico mais bem conservado”, assinala Ribeiro.
O geógrafo Wagner Ribeiro vê com otimismo o precedente aberto pelo Guarani. Para ele, o estímulo a novos tratados similares é fundamental para gerir o acesso à água. "A distribuição política da água não atende a demanda da humanidade. Assim, a cooperação é essencial para que o direito humano à água seja confirmado".Os meandros burocráticos transnacionais impedem que a matéria avance com a rapidez necessária em um mundo em que uma gota d’água valora a cada segundo. No entanto, o modelo de cooperação criado para o Guarani pode ser fonte de inspiração para novos acordos mundo afora, inclusive no próprio Brasil, que dispõe do Alter do Chão, uma reserva subterrânea promissora recém-descoberta na Amazônia, que pode ter o dobro de capacidade em relação a do Guarani.

Bate-papo

Leia a entrevista exclusiva concedida pelo embaixador João Luiz Pereira Pinto ao EcoD. Ele é diretor do Departamento da América do Sul I do Ministério das Relações Exteriores, que abrange justamente os países signatários do acordo do Aquífero Guarani (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai).

EcoD: Como foi pensada a ideia de criar um sistema de cooperação internacional para gerir o aquífero, que possui mais da metade de sua área no Brasil?

João Luiz Pereira Pinto: No âmbito das Nações Unidas, a Comissão de Direito Internacional criou grupo de trabalho que chegou a discutir a possibilidade de tratamento dos recursos hídricos transfronteiriços como patrimônio comum da humanidade. Diante disso, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai criaram, em 2004, no âmbito do Mercosul, o Grupo “Ad Hoc” de Alto Nível sobre o Aquífero Guarani para elaborar projeto de Acordo que reafirmasse a soberania dos quatro países sobre o recurso hídrico a possibilitasse seu aproveitamento de modo sustentável. Atualmente, apesar de o acordo ainda não estar em vigor, segue a cooperação técnica entre os países para ampliar o nosso conhecimento comum sobre o Sistema do Aquífero Guarani.

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Em 2010, os presidentes firmaram o tratado durante a Cúpula do Mercosul em San Juan, na Argentina. Foto: Globovisión

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Qual é a importância de estabelecer um pacto de cooperação na gestão dos recursos naturais?


Um pacto de cooperação para a gestão dos recursos naturais é fundamental para garantir a utilização sustentável dos mesmos. A experiência internacional tem mostrado que países que procuram gerir recursos comuns de forma compartilhada conseguem resultados mais satisfatórios do que obteriam de modo concorrente. No caso específico do Aquífero Guarani, é de grande importância, em primeiro lugar, que Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai cooperem para ampliar o conhecimento comum e gerar um banco de informações confiáveis e homogêneas sobre o manancial, de modo a permitir que as decisões soberanas de cada país sobre seus recursos naturais possam ser harmonizadas com as decisões dos demais países.


Pelo que os senhores examinaram, esse é o modelo mais bem-sucedido?


Podemos dizer que esse modelo de gestão é promissor. Os estudos realizados até o momento, incluindo a preparação do Mapa Base do Aquífero Guarani, já podem ser considerados um marco na relação entre os países da região. Também o processo negociador do Acordo foi um sucesso, com forte participação técnica no embasamento das negociações políticas, permitindo a tomada de decisões informadas e precisas. Cabe notar, por fim, que estudos sobre o Aquífero Guarani continuam sendo realizados.


No artº 4 do tratado está especificado que “as Partes promoverão a conservação e a proteção ambiental do Aquífero Guarani”. Como isso vem sendo feito? A cooperação auxilia ou dificulta o manejo sustentável dos recursos?

Em nível técnico são realizados encontros periódicos entre os países, no caso brasileiro, com a participação dos Estados e do Ministério do Meio Ambiente, para dar seguimento aos estudos sobre o Sistema do Aquífero Guarani. Esperamos que, com a entrada em vigor do acordo, a cooperação possa ser impulsionada, o que sem dúvida facilitaria o manejo sustentável do Aquífero Guarani.

Há muito se propaga a ideia de que os recursos hídricos impulsionariam uma futura guerra mundial. O professor Aaron Wolf, da Oregon State University, acredita a água é um recurso cujas características tendem a induzir à cooperação e não a conflitos e violência, o que ocorreria apenas por exceção. Qual é a sua opinião a respeito?


É legítima a crescente preocupação com a gestão dos recursos hídricos, em um cenário de possível escassez mundial no futuro. A América do Sul, no entanto, com seu vasto potencial hídrico têm mostrado que é possível construir marcos legal comum e projetos conjuntos de gestão, de modo a garantir que todos os povos da região se beneficiem de nossos recursos naturais. 
 


Fonte: http://www.ecodesenvolvimento.org



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