quarta-feira, 20 de março de 2013

A possível convivência com o Semiárido


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Quando chega a chuva é o momento de armazenar água para os períodos de estiagem
Foto: Thiago Ripper/Arquivo ASA

Hoje longe, muitas léguas/Numa triste solidão/Espero a chuva cair de novo/Pra mim voltar pro meu SertãoÉ no embalo nostálgico de Asa Branca, um dos maiores clássicos da Música Popular Brasileira, que a agricultora familiar Maria Silva de Jesus começa mais um dia de trabalho na fazenda Lagoa de Fora, comunidade de Canto, em Serrinha (BA), no Sertão baiano.
Mas se esse verdadeiro hino do povo sertanejo composto por Luiz Gonzaga parece cada vez mais atual, levando-se em conta a estiagem que castiga o Nordeste (a mais severa dos últimos 50 anos), também é verdade que muitas famílias não precisam mais sair do Sertão nesses tempos de crise, mas, ao contrário disso, podem permanecer nos seus locais de origem porque são capazes de conviver com ele.

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Feira agroecológica de Serrinha, no Semiárido baiano. Alimentos produzidos de forma ambientalmente correta em meio a uma das maiores secas da história
Foto: Arquivo Apaeb

É que dona Maria está entre as cerca de três milhões e quinhentas mil pessoas do Semiárido beneficiadas com o programa de cisternas da Articulação do Semiárido (ASA), rede formada por três mil organizações da sociedade civil que atuam na gestão e no desenvolvimento de políticas de convivência com a região.
“Duas cisternas abastecem minha família, uma para a produção e a outra para o consumo. Parte dos alimentos nós consumimos aqui em casa. Já o que sobra eu comercializo na feira de Serrinha”, explica Maria de Jesus, que planta cebolinha, alface e coentro. Segundo a agricultora, o nível da seca atual faz com que a tecnologia ajude a complementar a água escassa que sai da torneira.

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Barreiro-trincheira, tecnologia social desenvolvida pela ASA, armazena água da chuva e serve, principalmente, para matar a sede dos animais
Foto: João Roberto Ripper/Arquivo ASA

O rádio de dona Maria ainda entoa a Asa Branca em alto volume e bem no trecho em que o “rei do baião” lamenta que, “por farta d'água” perdeu seu gado, a agricultora lembra que também conta com outra tecnologia social importante, além das cisternas: o barreiro-trincheira, definido pela ASA como "um tanque longo, estreito, fundo e escavado no solo".A última vez que a produtora e sua família, formada por mais quatro pessoas, viram a água da chuva, em Serrinha, foi em janeiro. “São quase dois meses. Com essa escassez toda não tem água suficiente para produzir em grandes quantidades. A água para o abastecimento normal só tem caído uma vez por mês. Tem que ter reservatório e muita economia, porque senão fica sem água. São poucas famílias que estão produzindo”, relata.
“Serve para armazenar a água da chuva, matar a sede dos animais e para que a família possa ampliar a área produtiva com verduras, legumes e frutas. No meu caso, utilizo o barreiro para a produção de pequenos animais, como ovinos e caprinos”, exemplifica a agricultora. 

Cooperação e descentralização

Uma das milhares de organizações que atuam junto à ASA em todo o Brasil é o Movimento de Organização Comunitária (MOC), que trabalha para articular pessoas em três territórios da Bahia (Portal do Sertão, Vale do Jacuípe e região do Sisal) com o objetivo de que ocupem seus espaços como cidadãs e tenham acesso ao direito à água, por exemplo.

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Criação de animais pequenos
Foto: João Roberto Ripper/ArquivoASA

“A ASA e o MOC mostram que o Semiárido é viável desde que tenhamos políticas para este fim. A inviabilidade hoje não é do Semiárido, mas das políticas dirigidas a ele”, define o coordenador do MOC Naidson Quintella, que também coordena a ASA no estado da Bahia. De acordo com ele, essas organizações apontam, executam e fiscalizam políticas nesse sentido, mobilizando pessoas, empresas e governos.
“A política correta é a de convivência com o Semiárido e não a de combate à seca. Se aplicarmos a primeira tornamos o Semiárido viável. Por políticas de combate à seca entenda as grandes obras que não consideram a população, os mais pobres e simples, e que só servem aos interesses de alguns, como a transposição do Rio São Francisco”, critica Quintella.

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Cisterna-calçadão : capta a água de chuva por meio de um calçadão de cimento de 200 m², construído sobre o solo. Com essa área do calçadão, 300 mm de chuva são suficientes para encher a cisterna, que tem capacidade para 52 mil litros. Através de canos, a chuva que cai no calçadão escoa para a cisterna, construída na parte mais baixa do terreno e próxima à área de produção
Foto: Valda Nogueira/Arquivo ASA

Mesmo em meio à tamanha escassez de chuva devido a atual seca, o coordenador regional da ASA rejeita a tese de que o Semiárido não tem água. “Tem e muita, mas ela está concentrada nas mãos de poucos. O Semiárido brasileiro é o mais chuvoso do mundo, mas a água dele está concentrada em apenas alguns empreendimentos e propriedades. Aí a maioria da população fica mendigando uma lata de água que recebe do caminhão-pipa, muitas vezes, em período eleitoral”, aponta.
Dona Maria concorda. "A água do caminhão-pipa ajuda, mas não passa de um ajuda imediata. Depois que ele vai embora o problema continua, porque a nossa demanda é grande, são muitos dias sem água. As cisternas e o barreiro armazenam a água, por isso eles são mais úteis."
Atualmente, 1.228 cidades espalhadas em nove Estados já declararam situação de emergência. Isto representa um total de 22% dos municípios do Brasil. Já chega a 9.746.982 o número de pessoas afetadas pelas secas na região, ou seja, 5,1% da população do Brasil.
Os Estados de Pernambuco e Alagoas já adotam racionamento de água para conter os impactos da falta de abastecimento dos reservatórios. Dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), apontam que a situação não deve mudar nos próximos meses.

Possíveis alternativas

Quintella reivindica algumas políticas públicas capazes de distribuir melhor a água do Semiárido, entre as quais a reforma agrária, que repartiria as terras de forma mais igualitária para os trabalhadores produzirem; a política do estoque, utilizada em alguns países da Europa e que consiste em guardar água e sementes durante as estações do ano para que não haja falta no inverno; e a utilização em massa das tecnologias sociais.

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A barraginha, que tem de 2,0 a 3,0 metros de profundidade, oferece melhores condições de desenvolvimento de plantas nativas e frutíferas; permite condições para um manejo agroecológico das unidades produtivas familiares; aumenta culturas diversas em seu entorno; estimula o desenvolvimento de alternativas para garantir a segurança alimentar e nutricional por meio da produção agroecológica; proporciona formas para a geração de renda às famílias agricultoras; e motiva e mobiliza as famílias para uma ação coletiva organizada
Foto: Ana Lira 

Segundo o coordenador da ASA, no que diz respeito à produção, já são cerca de 30.000 tecnologias sociais implementadas pela organização. “Elas captam a água e possibilitam às pessoas hidratarem os animais, fazer pequenas irrigações, pequenos plantios com água da chuva, que era desperdiçada: cisterna-calçadão, barragens subterrâneas, tanques de pedra, cisterna de enxurrada”, pontua.


Importância das cisternas


De acordo com Quintella, todas essas tecnologias foram resgatadas da própria população. “Não são alternativas que vêm pura e simplesmente dos escritórios, mas das próprias experiências das comunidades – e ensinamos a população a lidar com elas.”
Na opinião do coordenador da ASA, a cisterna normalmente consegue abastecer as famílias apenas com a água da chuva, salvo em secas muito severas como esta que temos visto. Mas, de qualquer forma, se torna um instrumento importante da autonomia das famílias e das comunidades.
“Muitas comunidades beneficiadas chegaram às prefeituras e disseram: abasteçam nossas cisternas com caminhão-pipa que o problema da distribuição passa a ser nosso, não queremos político algum formando filas, nós vamos gerenciar isso [a distribuição de água].”
Conforme Quintella, a ASA, que tem um projeto intitulado “Um Milhão de Cisternas”, construiu cerca de 500 mil das 700 mil cisternas existentes hoje no Semiárido. “Levando-se em conta que cada uma delas abasteça, em média, cinco pessoas, nós temos três milhões e quinhentas mil com acesso a alguma forma de água potável na região”, calcula.
Para o coordenador da ASA, o Brasil vive um momento importante nesse sentido, pois a presidente Dilma Rousseff pretende universalizar o uso das cisternas no Semiárido. “Essa decisão é também consequência do trabalho da ASA, que agora tende a virar política pública, por meio do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS)”, comemora Naidson Quintella.
Perspectiva de dias melhores para outras Marias deste Brasil, que ao som de Luiz Gonzaga e à base da resistência, uma das principais características do povo nordestino, sofrem diariamente com “tamanha judiação”, mas também são capazes de encontrar alternativas para conviver e, principalmente, viver no Semiárido.

Fonte: http://www.ecodesenvolvimento.org

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